a atendente
Nem 11 da manhã e a barriga de Marjora roncava de fome. Era o seu alarme natural para o intervalo que se aproximava; quando o relógio batia 11:38 era dada a largada. Apesar da fome imensa, a vontade de mijar era ainda maior e Marjora sabia que não poderia passar mais de 5 minutos no banheiro pois não restaria muito tempo para almoçar. O intervalo exato era de 19 minutos, mas recentemente, após a quebra do único microondas da empresa, foram acrescentados mais 45 segundos para que cada funcionário pudesse esquentar a sua marmita em banho maria. “Em Manutenção”. A privada do banheiro do segundo andar entupiu e Marjora teve que ir em outro setor. Tudo bem, comida fria ainda é comida.
11:58; Marjora tem uma longa tarde pela frente. Trabalhava desde os 16 como atendente telefônica, vendendo de tudo. Acordava, de segunda a sábado, às 4:50 da madrugada para pegar o ônibus meia hora depois e chegar em tempo no terminal da sua cidade para pegar o ônibus das 5:40 para o terminal da capital para, sem atraso, pegar o ônibus das 6:30 e chegar exatamente às 7:15 no seu emprego atual; TLEXCOM — vendas inteligentes.
Aquela manhã tinha sido bem agitada; quase conseguiu fazer uma venda depois de um telefonema de 50 minutos. No fim, a ligação caiu, mas mesmo assim gerou uma alegria enorme na equipe só pelo fato de ficar tanto tempo falando. Alguns colegas chegaram a lhe dar parabéns! Exigia talento, mas os seis anos de experiência faziam Marjora tirar aquilo de letra. Ela sabia que uma conversa rentável passava por uma longa viagem ao mais profundo âmago da pessoa do outro lado.
- Jerônima, e o tempo? Essa chuvinha tá pra cabá!
- Nossa, verdade! Meu cachorro está completamente chateado…
- Ah, você tem cachorro? Como é o nome dele?
- Bartolomeu.
- Nossa, que nome lindo! Ele tem algum apelido ou é só Bartolomeu?
- Só Bartolomeu, mesmo! Por quê? Você não gostou do nome?
- Gostei, Jerônima! Gostei demais… Aliás, o Bart tem seguro veterinário?
Cada informação era uma nova rota para dentro de um profundo e diverso funil de possibilidades lucrativas. O segredo era encaminhar a conversa para onde fosse possível capitalizar.
- Atchim!
- Saúde, Lucineide! Tais gripada, é?
- É gripe, não! Só alergia.
- Lucineide, mulher, alergia de quê?
- Eu tenho alergia a ácaro, sabe?
- Sei… aquele bichinho microscópico que existe em todo lugar.
- Exatamente.
- Que tremendo azar, Lucineide! Só um minutinho, amiga…
O silêncio por alguns segundos serve para colocar a estratégia em ordem enquanto procura-se papéis com os famosos roteiros de desejo.
- Lucineide, veja só, eu tenho aqui um kit de cosméticos exclusivos e perfeitos para quem tem nariz assado da alergia de ácaros. O que você acha? Apenas 12 vezes sem juros de 45 e 80. Primeira parcela só em maio.
- É Azon?
- É Azon, sim, amiga!
- Ihh, esquece… Também tô vendendo.
Valores, cultura, hobbies, gostos… até a pobreza humana era matéria-prima para o poderoso raio capitalizador da TLEXCOM! Gosta de esportes? Raio capitalizador! Fã de arte e livros? Raio capitalizador! Precisa de férias? Raio capitalizador! Cansado da vida? Raio capitalizador! Nem a intacta fé divina escapava…
- Padre Márcio, que tal o senhor levar este excelso e lustroso Novíssimo Testamento Ilustrado?
E existia um raio para cada singela necessidade humana, bastava apenas saber como aplicá-lo.
- Chefe, mais um procurando por droga! A gente tá fazendo?
Porém, vender era a exceção e quase todas as ligações terminaram daquele jeito; um seco não, quando não mandava tomar no cu. Eram necessárias 20 vendas por mês para bater A Meta e só assim o salário inicial de 1008 reais dobrava para 2016 reais, sem descontar os impostos. Marjora nunca conseguiu bater A Meta e nem conhecia alguém que tenha feito, só lendas de um mito-vendedor que bateu todas As Metas com o seu talento e perseverança e hoje é um dos coachs mais bem pagos do planeta. Ele era a grande inspiração de Marjora!
Maldosamente diziam que ela nunca conseguiria. Alguns colegas acusavam a sua voz de ser um pouco estridente. Seu namorado também a culpava pelo seu jeito meigo, que por muitas vezes, inconscientemente, tendia a sentir pena do cliente e não facilitava a venda. Enquanto isso, o seu chefe-superior a queria mais alegre e dizia: “sorria, Marjora! Ninguém vai comprar olhando para a sua cara de merda.”
Aquela era a última tarde do mês e faltava apenas uma mísera venda para superar A Meta pela primeira vez, porém todos os telefonemas fracassaram nos primeiros segundos. Os poucos que atendiam ficavam tirando sarro dela, roubando preciosos segundos de trabalho. Cada ligação era uma chance perdida.
5:40, últimos minutos; o painel piscante indica que uma pessoa atendeu — destino?
- Alô… …
- Com licença, por acaso é o Senhor… Fabio Marchesini?
- Oi… sim, sou eu… Quem fala?
Ela conseguiu quase dez segundos de puro êxito. Preparou uma voz meiga, deu um gole de água antes de começar a falar.
- Senhor Marchesini, que bom falar com você! Eu acho que a gente não se conhece… eu sou a Marjora… Marjora Perez e eu tenho uma proposta muito interessante para você.
- Pr… proposta?
- Sim, Você trabalha com computadores, certo?
- Eu trabalho com computação. Por quê?
- Perfeito… Perfeito!
Ela começa a pegar alguns roteiros de desejo enquanto enrola um pouco.
- Você tem filhos, Senhor Marchesini?
- Filhos…? Não, não. Eu não tenho filhos.
- E esposa?
- Também não…
- Hum… E como está o seu trabalho com computadores?
- Meu emprego? Ahh… que bom que você perguntou porque na verdade a partir de hoje estou oficialmente desempregado.
- Desempregado? Como assim? Me conte o que aconteceu.
- Você quer saber a minha história? Tem certeza?
- Claro, conte-me. Eu posso te ajudar.
- Ajudar?
O homem solta uma grande risada de deboche e começa a falar de um jeito mais enérgico.
- Não, você não pode me ajudar. Você. Não. Pode. Me ajudar! A não ser que você seja uma assassina de aluguel ou tenha alguma para me indicar. De outra forma, você não pode me ajudar…
O homem desenrolou a falar. Marjora perdeu definitivamente a esperança.
- Você já chegou a perceber como nós, os trabalhadores, somos usados e humilhados diariamente para depois sermos jogados no lixo por um bando de gananciosos que passam as noites tomando uísque com os cus lambidos por garotos de programa? Velhos, gordos e bandidos que nunca trabalharam na vida e que ganham 500 vezes mais que qualquer funcionário que mantém a sua empresa em pé e funcionando… e na primeira crise ou derrapada, mandam você embora; descartável, como lixo! É isso que se chama de justiça? É isso que eu sou? Um grande lixo? 6 anos e meio de dedicação, recusei outras propostas melhores e agora que o mercado esfriou, estou no olho da rua e sem um tostão no bolso. E minhas dívidas? Nossa, quanta coisa que gastei; um carro novo, o meu catamarã, a reforma do apartamento da praia… Tá tudo parcelado. Sou oficialmente um fodido. Marjora, né? Não vou precisar da sua ajuda porque eu sou oficialmente um fodido! Ouviu? UM FO-DI-DO! Eu não vou precisar de mais nada. Eu não tenho mais desejo algum… Ai ai, você já pensou como é insignificante a existência humana? Eu e você existimos por acaso, aconteceu, e agora sou mais uma pessoa que se depara com a verdade, com a única verdade que sabemos que existe: o meu próprio e insignificante fim! Marjora, certo? O que você sonha para o seu futuro? Saiba… Saiba logo… e comece a buscá-lo antes que seja tarde… antes que seu corpo comece a envelhecer e seu entusiasmo diminua ao ponto de te jogar em um buraco tão fundo e tão escuro que você não possa mais sair sem ficar completamente cego ou louco e virar um fanático qualquer. E nada que você tenha, nada que você compre ou nada que você ganhe vai mudar o seu destino, a não ser que você seja um dos gananciosos do cu lambido, o que duvido muito… A gente nunca os vê, eles não andam entre nós, nem falam a nossa língua, mas o mais triste é que de uma forma ou de outra nós queremos as mesmas coisas que estas pessoas. E seguimos direitinho suas cartilhas para sonharmos com a mesma casa de revista, o carro do ano, a roupa da estação, o corpo perfeito…AHHH…. e quem não consegue é um fracassado, como eu!
O tempo esgotou-se. O sonho de bater a meta mais uma vez foi-se pelos ares.
- Marjora, certo!? Me responda, do fundo do seu coração, você acredita em Deus?
- Na verdade, eu acredito em duendes. Duendes verdes e com três olhos que pulam mais de quatro metros de altura.
- Boh, que pira… Mas você os vê?
- Sim, claro. Todos os dias.
- E eles têm poderes divinos?
- Alguns, somente; outros possuem capacidades físicas específicas, como nadar sem respirar por quinze minutos ou até mesmo aguentar porrada sem sentir dor. Mas por cima, um terço é divino, sim. E, digo mais, melhor não avacalhar com eles; são extremamente vingativos. Com eles, não tem essa de perdão; é pau no trouxa!
- Tu,tu,tu…
Fim de expediente. Antes de ir embora, seu chefe-superior a procura com uma oferta de acordo; forjaria uma venda falsa e ela lhe cederia parte da bonificação; na verdade, ele ficaria com 80%. Marjora aceitou na hora. Satisfeita, é ela quem pagaria a pizza de aniversário do irmão naquela noite. Só faltavam três ônibus até lá.
12 de fevereiro de 2021. | Escrito por Carricas