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o alerta vermelho

Quando piscou a luz vermelha do painel na Sala de Monitoria Avançada (SMA) do Departamento de Investigações Especiais de Delinquentes e Vagamundos (DIDE) de Xumblesblau, Wolfang Bubzi quase se engasgou com o sorvete geladinho que apreciava durante o debate esportivo na TV portátil. Há quanto tempo aquela luz não piscava? Foi rapidamente procurar os registros, não se lembrava…

Solicitou tempos atrás uma vistoria no sistema, tanto na parte programática como em todo o equipamento, com revisão de fios, radares, sistemas de busca e rastreamento, câmeras e, inclusive, examinou pessoalmente peça por peça do imenso painel de monitoramento da sua estação de trabalho no SMA. Estava desconfiado de sabotagem, a típica sabotagem de algum infiltrado no DIDE a serviço dos procurados. Mas depois da vistoria, foi detectado que tudo estava em ordem e o sistema foi até aprimorado. O case de Xumblesblau era um sucesso, mas algo escapou desta vez.

Bubzi achou no fichário de Registro de Atividades Baderneiras da Ordem Local; último caso de comunista detectado na cidade de Xumblesblau foi a seis anos atrás, um pouco antes da ferramenta WhatsBot entrar em funcionamento - a melhor ferramenta anticomunista que já inventaram, capaz de criar novas verdades automaticamente através de inteligência artificial limitadíssima e de terceira mão. O grande painel do SMA iniciou um rastreamento completo do caso, enquanto Bubzi criou uma apresentação de powerpoint com as informações. Sua intuição dizia que alguém estava falhando. Talvez a equipe de criação de conteúdo, que estava deixando de impactar alguém. Ou talvez foi algum forasteiro que ainda não estava inserido no sistema cultural da cidade. Mas que comunista gostaria de morar aqui, ponderou rapidamente. Sabia que o caso era de extrema gravidade e precisava ser apurado com urgência.

Mas no dia seguinte porque o DIDE não pagava hora extra e ele não era otário. Já na sua bela casa, localizada numa rua com 45 graus de inclinação, Bubzi não conseguia parar de pensar no caso do comunista. Alguns relatórios mostraram que era uma pessoa instruída e altamente especializada, com poder aquisitivo e acesso a bens de consumo. Foi quando teve certeza que o culpado de toda aquela crise era alguém dos Recursos Humanos. Ou dos deputados da oposição que estavam sabotando o projeto. Naquele momento a sua cara flácida e branca enrubesceu em uma ira incontrolável e angustiante ao ponto da sua esposa se preocupar. Dela, só reclamou. Da janta, das roupas lavadas, passadas e dobradas, do cachorro, da limpeza da casa e até da cara de revoltada. Abriu uma, duas, três, quatro, nove cervejas para relaxar e ficou a noite toda falando sozinho - que não conseguia se conformar que ainda era dado crédito aos comunistas em Xumblesblau, que como que podia alguém empregar um comunista e como que esse comunista podia gerar renda e como que isso era possível e que era traição e que isso e que era aquilo - e que agora era preciso ir atrás desse safado.

No dia seguinte, a notícia já corria a cidade. A esposa de Bubzi contou para o seu personal que o marido achou um comunista e o bonitão logo espalhou para um, que já falou pro outro, e antes mesmo do meio-dia uma multidão se reuniu em frente a prefeitura da cidade para uma "caçada ao esquerdalha". O personal também foi, com um taco de beisebol escrito "O CAPITAL".  Nos cafés com cuca das idosas só existia um assunto. Quem era o tal subversivo da cidade? Todos comunistas que conheciam acabaram indo embora de lá durante o regime militar ou se converteram. Talvez fosse o professor de história em uma recaída. Uma das senhoras apostava no jovem jornalista, "um petulante". Diziam em comentários indecorosos que "todos transavam entre si" e que "também não tomavam banho!" Porém, aquele êxtase do exótico desconhecido do amedrontante destino também elevou os ânimos de alguns moradores. Um comunista solto pela cidade era um enorme perigo, e se ele fumar um baseado na praça? A população não podia aceitar este ultraje para a moral e os bons costumes de todos aqueles seres abençoados pela divindade que paira sobre esta Terra. Infelizmente, nessa ânsia por instrumentalizar a benção prodigiosa dada aos cidadãos xumblesblauenses, um justiceiro iluminado assassinou por engano um jovem negro vestindo vermelho na entrada do banco da cidade. Tiveram certeza do erro quando viram que em sua bolsa carregava um livro do humorista local Guillermo Miusa. E por causa de sua jaqueta; era funcionário de uma empresa de refrigerantes.

Já no DIDE, o painel do SMA terminou a varredura de dados e apresentou um relatório completo do delinquente vagabundo. Era uma mulher. Rosana Augusta Schlongbar Schillinpler. 28 anos. Nascida em Xumblesblau. Rua Valdomiro Flores, 334. Apto 801. Era muito pior do que Bubzi pensava; era uma corrosão interna do sistema. Rapidamente executou uma busca na casa da investigada a fim de procurar algo que provasse a sua traição. Naquela tarde invadiram a residência, um pequeno apartamento de dois quartos, Bubzi e oito homens armados com metralhadoras e granadas, escudos e capacetes. Rosana estava comendo pipoca e assistindo Irmãos à Obra na TV quando recebeu voz de prisão. Reviraram o local atrás de algo que a ligasse ao grande e malvado comunismo; podia ser qualquer livro, revista Caros Amigos, caneca vermelha, camiseta do PT, adesivo feminista, arco-íris, DVD do Pink Floyd, mas nada foi achado. Levaram-na para averiguação, com todas disponíveis e conhecidas técnicas de psicologia de guerra!

- Rosana Augusta Schlongbar Schillinpler. Este nome é verdadeiro?

- Sim.

- Porque, de comunista, nem no nome dá pra acreditar!

- Mas eu não sou comunista.

- O que? Você disse que é comunista?

- Não! Eu disse, eu não sou comunista.

- Mas aqui me diz que você é comunista.

- Mas eu não sou.

- E você acha que vou acreditar em você ou no que está escrito?

- Em mim.

- Por que?

- Porque eu odeio comunistas.

- Você odeia comunistas?

- Sim.

- Eu também odeio comunistas.

- Sim, comunistas são os piores.

- Sanguessugas assassinas em busca do seu dinheiro, vagabundos desgraçados.

- Sim, muito. Rasteiros.

- Mas, calma! Aqui me diz que você baixou o Manifesto Comunista.

- Foi um vírus.

- Como assim, foi um vírus?

- Sim. Foi um vírus chinês que quer implantar o comunismo no mundo.

- Então... você não baixou o livro?

- Não. Eu odeio ler!

- Ótimo!

Bubzi saiu da sala e em seguida vieram dois guardas jovens e loiros sorrindo simpaticamente.

- Oi moça! Você tá liberada…

- Desculpa pelo engano, ok? Vá com Deus.

Rosana foi levada para casa numa viatura do DIDE. Aproveitou a noite para tomar um banho e assistir o resto do capítulo de Irmãos à Obra, depois comeu uma salada de folhas verdes, champignon, linhaça dourada, lascas de salmão e um pouco de molho de maracujá. Para digestão, fumou um cigarro sentada na varanda enquanto, no celular, fazia um teste online para saber com qual personagem de Sopranos se parecia. Às 9 horas da noite, subiu até o terraço onde embarcou em um helicóptero. O voo durou menos de dez minutos, pousando em um fabuloso sítio. Um senhor grisalho de barba lhe esperava muito preocupado e ansioso por notícias do que tinha acontecido mais cedo. Ela se resumiu a falar apenas o necessário.

- Eles são muito burros, companheiro. Não se preocupe!

O senhor a conduziu até o prédio principal, escoltados por alguns soldados armados. Desceram uma escada enquanto um coro crescia a cada degrau; "Rose, Rose, Rose!". No fim da escada, em uma antessala, quatro soldados fardados em pose militar iniciaram um jogral de boas-vindas.

- Grande Companheira Rose Marx!

- Seja Bem-vinda Nossa Líder Suprema!

- Que a Força de Stalin Esteja Convosco!

- Unidos em Lenin Venceremos!

Cada soldado terminou a sua fala prestando continência com olhar de lealdade e respeito. Rose agradeceu e em seguida, sublimemente, atravessou a porta de onde os gritos cresciam com a notícia da sua chegada. Ao pisar no palco, o anfiteatro acendeu nas cores do comunismo com luzes piscantes e raios infravermelhos. Uma grande foice e um igualmente grande martelo desceram do teto e uniram-se sobre Rose para delírio de todos no meio daquela pirotecnia embalada pelo hino soviético. Grandes bandeiras de líderes comunistas surgiram e todos aplaudiram catarticamente. Rose se dirigiu ao microfone e a multidão se esforçou para escutá-la, calando-se com extrema rapidez.

- Boa noite companheiros e companheiras. Eu tive um sonho e este sonho dizia que a revolução está chegando, a nossa cidade em breve vai avermelhar! Cada pedacinho de terra de Xumblesblau será transformado em propriedade da República Comunista de Xumblesblovisk, onde cada casa, cada empresa, cada loja comercial, cada escola, cada hospital, clínica, bar, cachaçaria, sítio, linguiçaria, restaurante; tudo que existe vai ser nosso e tudo vai funcionar com uma única função… servir ao povo. Servir a vocês! Chega de ser escravo desses bandidos travestidos, os fascistas vorazes! Ao povo o que é do povo e a justiça será feita. E se resistirem, eu prometo, vamos comer as criancinhas daqueles safados só como garantia que não sobrará um desgraçado vivo pra contar a história. Estou com vocês e a vitória será nossa!

O povo vibrou com gritos e aplausos. Após, iniciou-se um coro de "Uh vai morrer, uh vai morrer". O hino soviético voltou aos grandes amplificadores em meio à pirotecnia que rolou madrugada adentro. No dia seguinte, Bubzi ainda não entendia o que tinha acontecido e solicitou mais uma perícia completa no sistema da SMA. Falso positivo? Como? Aquilo só podia ser alguma fraude ou, talvez, algum fio solto… bastava achar onde.

19 de janeiro de 2021. | Escrito por Carricas

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