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ele só queria fazer o bem

No Poção da Catirimbonha, bem longe de tudo que é moderno e nefasto, existia um vilarejo conhecido como Vila Velha, que por décadas habitou os planaltos áridos daquela região. Gente humilde, simples, que vivia do que plantava e criava. Uma vida difícil, mas com pequenas alegrias e recompensas. Era impossível não se apaixonar pelo passar dos dias naquele lugar, com o frescor dos brejos e o encanto das revigorantes paisagens. Volta e meia turistas cruzavam aquele pedaço de terra em busca do puro ar do interior; um passeio no paraíso!

Melhorias vieram aos poucos. Pelo menos três gerações viveram naquele povoado sem assistência, seja de saúde ou policial. Tudo era resolvido entre eles. Se ocorria um incêndio ou crime, eram os próprios moradores do local que resolviam. Mas, com o passar do tempo, o pequeno vilarejo evoluiu para povoado. Depois, quando apareceu no mapa eleitoral, virou município. Não que isso mudasse muita coisa. Políticos volta e meia apareciam pelo local, uma vez um até se elegeu com os votos do vilarejo depois de prometer a construção de um hospital. Naquela época, para ir ao médico, era preciso pegar mais de 50 quilômetros à cidade mais próxima e muitas vezes 300 até a capital. Foram-se dez anos para ser feita uma pequena clínica, inaugurada com um grande espetáculo de dupla caipira.  

Para a família de Marcelo Augusto, uma das pioneiras da região, aquilo era prosperidade. A mãe, Rosalva, não se conteve com a possibilidade do seu filho vir a ser o primeiro médico local a trabalhar na clínica da cidade, que ficou por meses sem médico. Ninguém queria morar lá, mesmo recebendo o salário de 40 mil reais. Por fim, acabaram contratando o Doutor Nigori, um veterano ortopedista que já foi preso duas vezes por atraso de pensões alimentícias distintas. Esse impasse deixou Rosalva ainda mais eufórica, tanto que Marcelo Augusto começou a ser chamado de “Doutor” antes mesmo de passar no Vestibular.

Todos sempre diziam o mesmo de Marcelo Augusto, “meu, que cara legal”, e ele era conhecido no povoado como um rapaz prestativo, que sempre estava disposto a ajudar qualquer pessoa.

- Eu só quero fazer o bem! - Era o seu lema

Entrou no conselho da igreja aos catorze anos e estava presente na organização de todos os eventos. Com o passar do tempo, o número de pessoas na cidade aumentou, muitos em dificuldade e que contavam com a ajuda de voluntários em atos beneficentes. Marcelo Augusto sempre estava lá, ajudando! Essa dedicação também era vista nos estudos, afinal, queria ser médico, mas depois de alguns anos também se desenvolveu na parte física. Sua rotina era assim; vivia dividido entre livros e halteres, laboratórios e ginásios. Sonhava em servir ao exército, mas não contava com o apoio da mãe. “Vai desviá-lo da Medicina”, dizia. Acabou desistindo do sonho militar, mas enquanto se preparava para as provas de admissão na Faculdade de Medicina da UNICATI (Universidade do Planalto do Catirimbonha), juntou-se ao BBVVV (Batalhão de Bombeiros Voluntários de Vila Velha). O que viveu, então, foram meses de grandes experiências e aprendizados, onde uniu o seu instinto genuinamente altruísta com o empirismo técnico e tático de resgates e salvamentos. Porém, infelizmente, Marcelo Augusto nunca conseguiu virar doutor, nem cursou universidade alguma.

Na tarde daquele sábado, quatro de novembro macabro, Marcelo Augusto estava na sacada da sua casa tocando sou caipira pira pora numa viola desafinada. Era sua folga do plantão de fim de semana do BBVVV e estava só esperando cair o toró do dia pra decidir mover a bunda do lugar. Não demorou muito, a chuva veio e, também, sua mãe aos gritos.

- Marcelo Augusto, Marcelo Augusto! Rápido. Aconteceu um acidente... na companhia.

Ele nunca esqueceu deste dia, o fatídico dia que se deu início a um trabalho de duas semanas ao lado de todo o efetivo do BBVVV. Há um ano, uma empresa de mineração instalou-se a alguns quilômetros da cidade, próxima ao Poção dos Abençoados, que além de belo, era o principal ponto turístico da região e servia como fonte de água para todas as plantações e pessoas de Vila Velha, mas que acabou destruído naquele dia com o rompimento de uma represa de rejeitos da empresa.

Uma tragédia com buscas e tentativas de salvamentos frustrados. Marcelo Augusto nunca tinha passado por algo parecido naquele ano como bombeiro. Vila Velha quase não tinha acidentes, no máximo quedas de bicicleta ou resgate de turistas despreparados. Incêndio teve apenas um, no boteco da cidade e foi controlado com sucesso. Marcelo Augusto, mesmo, tinha uma fama até meio lépida entre os colegas do batalhão por constantemente ser acionado para resgatar o gato de Joana Marinho, jovem da cidade com quem ele sempre alimentou uma platônica paixão. Não tinha jeito, o gato não gostava de nenhum outro bombeiro de Vila Velha, só do “Doutor”. Foram tantos resgates que ele acabou conquistando o coração da moça. Porém, o romance terminou quando todos tiveram que deixar a cidade.

A destruição da tragédia acabou com as plantações e com a água do pequeno município. Em meses, veio uma ordem federal de evacuar a área. Testes clínicos em habitantes que adoeceram detectaram resíduos tóxicos mortais no ar local. Doutor Nigori foi um dos primeiros a sair, deixando a situação ainda mais lastimável.

Com o fim de Vila Velha, Marcelo Augusto fez como todos e mudou-se para a capital, São Tomé dos Valiosos. Já sem sua mãe, uma das vítimas fatais da intoxicação venenosa do ar de Vila Velha, alojou-se em um pequeno cortiço na periferia da cidade. Também logo conseguiu um emprego como bombeiro após contar a sua história na entrevista de admissão.

- Minha santa mãe quem me criou sempre disse para nunca desanimar. Nunca entregar os pontos. Nunca desistir do jogo. E assim eu sigo e com fé que com esse emprego, muitas coisas boas acontecerão!

O trabalho era muito maior na Quarta Divisão dos Bombeiros da Capital, praticamente não parava por doze horas diárias. Violência doméstica, incêndios de todos os tipos, overdoses, piripaques, surtos psicóticos… Exigia cada vez mais recursos psicológicos para aguentar a pressão, mas ele encarava isso com muita força de vontade.

Rapidamente virou especialista em resgate em tentativa de suicídio. Tinha uma capacidade sobrenatural de cativar as pessoas com histórias simples, as mesmas histórias que seu avós contavam quando era menor. De certa forma, ele tinha um grande dom de convencer as pessoas a gostarem da vida, nem que isso fosse do jeito delas. Uma vez, um jovem resgatado disse que desistiu de se matar só para não ouvir aquelas histórias do bombeiro e ainda cuspiu na sua cara após insultá-lo.

- Volta pra roça, caipira insignificante!

Aquilo era fazer o bem. Era o bem que ele buscava, não restava dúvida na sua mente. O seu instigante senso de justiça o guiava para uma popularidade inesperada dentro da Quarta Divisão, gerando inclusive muita discórdia. O seu destaque foi notícia em um jornaleco de terceiro nível, que ganhou alguma visibilidade com um perfil do “Dr. Bombeiro”. A manchete, claramente apelativa, pegou mal entre os companheiros e até mesmo no Quartel General, que ordenou: “Marcelo Augusto é um problema!”

Mas ele saiu antes mesmo de virar um “problema ainda maior”. Na comemoração de quinze anos da Quarta Divisão, através de conversas com alguns colegas, descobriu a origem do dinheiro investido em vinte e cinco costelas assadas, trinta e cinco engradados de cerveja, quarenta e oito pedaços de torta de limão, duzentas mini empadas de camarão e duzentas mini empadas de carne seca. Afinal da onde surgiu aquilo se ele mesmo não tinha recebido os três últimos salários com alegação que os recursos públicos estavam atrasados, o que levou a se mudar para o batalhão.

- É o dinheiro da coleta semestral! Cada estabelecimento é obrigado a nos fornecer um extra ou não recebe o nosso atendimento… e se não pagar, pode acontecer algo pior!

Homero era um veterano dos bombeiros, talvez um dos poucos que conversava com Marcelo Augusto e também morava no batalhão. Vivia bêbado e nunca perdia uma festa.

- Inclusive, vais receber uma parte. É só passar na secretaria e pedir pelo dízimo. Ou achou que a gente trabalha de graça?

Passou na secretaria e era tudo verdade, muito mais que o seu salário, mas se sentiu intimidado a recusar. No fundo, só queria saber se Homero não o enganava.  Na madrugada pegou as suas coisas e foi embora de volta para o cortiço. Nunca mais voltou a usar a sua farda.

Conseguiu a duras penas um emprego em uma suqueria no Centro. Para ele, aquele ambiente urbano, barulhento e poluído era o mais nocivo possível, não imaginava que era possível existir tanta gente vivendo no mesmo lugar. Mesmo assim, levemente frustrado, ele conquistou o seu chefe com a sua determinação em dar a volta por cima das dificuldades. Com o tempo, se mudou para o subsolo da loja e logo se tornou gerente. Tudo parecia estar finalmente melhorando.

Primavera, 2020. Marcelo Augusto está no balcão da Suqueria Dello Valle, Avenida da Contramão, 385. Ele prepara uma grande novidade para o final de semana, mais especificamente para domingo: a venda de frango assado e farofa ao preço de 25 reais. É quase 10 reais mais barato que todos os outros estabelecimentos da região, tudo graças a um fornecedor, ex-vizinho de Vila Velha, que conseguiu um mega desconto nos frangos. Precisava buscá-los no Mercado Público, a algumas quadras da suqueria, mas decidiu esperar por Fabislene da Boutique Estrela. Todos os dias ela passa pontualmente às 10 horas em direção ao trabalho, curiosamente no caminho do Mercado Público.

- Matilde, vou lá comprar os frangos. Assume aqui o balcão! - Chamou sua colega quando a moça passou pontualmente como sempre sem olhar para o lado.

Eles se conheceram em um aplicativo de relacionamento e chegaram a sair algumas vezes, tiveram um pequeno rolo, mas Fabislene parou de falar com ele sem motivo ou explicação.

- Fabi! Espera, fala comigo… Você está brava? Não me responde mais.

- Nêgo, se meu ex te ver aqui comigo, você já era. Melhor dar meia volta e ir embora.

O ex-namorado de Fabislene era um ex-lutador de Jiu Jitsu, conhecido por ser dono da academia mais barra pesada do centro. Ele tinha fama de brigão, mas principalmente de filha da puta com as mulheres. Com Fabi, não foi diferente e ela sofria as consequências diariamente, era perseguida e Marcelo Augusto queria impedi-lo. Chamava-se Venom e apareceu enquanto os dois conversavam.

- Hei, frangão! Afaste-se da minha mina ou eu vou aí e te encho de porrada!

Marcelo Augusto não falou uma palavra. Simplesmente foi pra cima daquele abusador em forma de homem de 110 quilos de músculos inchados e roupas justas, acostumado a espancar pessoas. Usou um golpe apenas, uma pontapé  direto na fuça do sujeito que bateu a cabeça no meio fio da rua e desmaiou, gerando aplausos da multidão. Porém, aquele ato de heroísmo, mais um em sua vida, foi a pá de cal no rolo com Fabi, que acabou ficando revoltada com ele e levou Venom semivivo para sua casa, com quem acabou reatando o namoro depois.

No domingo, acordou cedo e botou os frangos temperados pela Matilde para assar. A resposta à publicidade foi positiva; dez reservas e algumas promessas de venda. Mas a carne não dava nem cheiro quando chegou um carro rebaixado todo filmado com quatro pessoas, todos homens, alguns fumavam. Queriam falar com o dono.

- Sou o gerente e responsável. Querem o cardápio?

Até então Marcelo Augusto não sabia com quem estava lidando, apesar da péssima impressão que teve daqueles jovens de jaquetas no calor e fedendo a uísque ainda pela manhã.

- Você por acaso tem permissão da PFFC para vender frango?

- Eu tenho alvará da loja...

- Não, você não tem alvará! Essa área é da PFFC e somente com um alvará emitido pela PFFC é que você pode vender frango nesta região. Ouviu bem? Por isso… Tá tudo confiscado! Podem fechar essa merda, galera.

PFFC - Primeira Facção do Frango da Capital. Uma máfia secreta de assadores de frango que controlam uma vasta rede de restaurantes, desde o fornecimento ao produto final. Ao divulgar amplamente que venderia frangos assados a 25 reais, sem permissão da PFFC, Marcelo Augusto colocou a sua vida em risco e arruinou o futuro promissor da suqueria.

Na manhã seguinte, acordou babando em um pasto de uma cidade vizinha, imundo, mas sem graves ferimentos, somente alguns hematomas e picadas de insetos. A loja foi destruída e ele não tinha mais nada. Voltou caminhando pela rodovia, quando começou uma forte chuva de granizo.

- Porra, eu só queria fazer o bem!

Depois de uma semana dormindo na rua, a fome era implacável. No domingo, quando o centro de São Tomé dos Valiosos foi tomado pelo habitual cheiro da gordura animal assada, cruel para os famintos estômagos de cachorros e mendigos, Marcelo Augusto se rendeu. Foi a um dos tantos restaurantes controlados pela PFFC e implorou por um pedaço de frango. Era sua sentença e assim seguiram os dias. Um peito, um favor escuso; uma coxa, um trabalho sujo.

Logo cresceu dentro da máfia, mas caiu. Foi preso e acabou de bico calado, ameaçado de morte e perseguido pelos líderes da facção dentro da cadeia. Cumpre dez anos e meio, frequenta o centro religioso, é voluntário na enfermaria, já evitou quinze suicídios de detentos e reanimou outros por diversos motivos. O advogado da PFFC prometeu uma redução de pena por sua boa conduta, que até lhe rendeu um apelido na ala masculina do Presídio Estadual da Serra dos Alaúdes: o Bandido do Bem.

11 de janeiro de 2021. | Escrito por Carricas

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