o primeiro dia
Nunca é fácil. Para Chelo, era ainda pior. Garoto tímido, quieto, famoso nerd, amante dos computadores, da arte em quadrinhos e quem sempre odiou ser o centro de qualquer atenção. Durante a noite quase não dormiu só de pensar na necessidade de falar com os novos colegas naquela desagradável dinâmica empresarial de apresentação.
Apesar desse seu traço anti social, era preciso trabalhar. Conseguiu o emprego depois de ficar apenas poucos dias desempregado, mesmo assim foi tomado por alta tensão e ansiedade pois estava completamente sem dinheiro depois de gastar catorze mil reais no cartão de crédito. Um dia antes de ser demitido na sua última empresa, por coincidência e impulso, comprou diversos games e uma nova memória RAM super poderosa capaz de transformar a realidade em algo muito sem graça.
Quando Chelo era garoto não tinha videogames. Conviveu por anos com a promessa de seu pai que ganharia um Super Nintendo, mas chegava o Natal e nada. Sempre sozinho, ele ficava a maior parte do seus dias desenhando, pois odiava pegar sol e quase nunca participava da pelada dos vizinhos, dos passeios de bike com os primos ou mesmo de qualquer tipo de evento ao ar livre. Uma vez chegou a fantasiar que era alérgico ao sol, revelando reações psicossomáticas que convenceram seus pais a autorizar a sua ausência numa prova. Mas não era nada. Dizia a mãe, “só coisa da sua cabecinha” expressando a imparável vontade natural de querer desenhar e ler quadrinhos o tempo todo. Por fim, aceito que era de fato o seu talento, sua paixão e seu destino, estes lhe renderam uma carreira como publicitário.
Naquela manhã, acordou cedo e tomou um banho rápido para não se atrasar. Ele odiava tomar banho de manhã, mas pensou ser mais adequado para o primeiro dia. Cogitou dar uma bola no baseado da noite anterior, só para relaxar, mas desistiu para não ficar paranoico na hora da sua apresentação. Imagina?
O prédio da Agência Muchacho tinha quatro andares, todos espelhados, entre colunas e estruturas horizontais de concreto; era semelhante a todos os prédios construídos na década. Dentro, o padrão vultoso continuava, com espelhos gigantescos entre colunas metalizadas em estilo de moderno vazio. Chelo foi recepcionado por Margareth, a diretora de criação da agência, sua nova chefe, que o conduziu até o Departamento de Criação. Quando ultrapassou a grande porta preta, com detalhes espelhados igual a todas as outras, parecia entrar por um portal para outra dimensão.
Tudo mudou radicalmente, saindo daquele ambiente asséptico para algo diferente e acolhedor, com cores imperativas, pufes por todos os lados, chão acarpetado, esculturas de personagens de desenho japonês nas estantes, uma projeção de vídeo arte, pinturas com abstratismo irreverente nas paredes de diversas texturas e, principalmente, uma delicada iluminação amarelada com capacidade de abraçar e catalisar a criatividade humana.
“Michelo, seja bem-vindo ao nosso time! Estamos muito felizes em te receber! Você é endorsement perfeito que we are looking for e, também, é claro, gostamos muito do seu profile.”
Margareth era uma mulher de 40 anos e vestia um terno com mangas e calças mais curtas que o normal. Tinha um rosto todo puxado, aparentava velhice precoce por excesso de fumo e sol. Ela falava de um jeito padronizado, sem alterar as expressões e com um olhar técnico, como se fosse uma mestre de cerimônias que buscava olhar no rosto de ninguém enquanto todos a olhavam.
“Esta é a sua mesa e este, o seu equipamento, o mais pujante do mercado! Aqui estão Claus, Kauam, Tiago e Nádia… eles serão os seus colegas.”
Claus era de longe o que mais se destacava, com um um cabelo longo e grandes entradas de uma avançada calvície. Mantinha um semblante sarcástico, fazendo algumas caretas e expressões indecifráveis enquanto movia suas grandes pernas finas a todo momento. Margareth e Chelo ainda conversavam quando, na primeira brecha, o figurão os interrompeu.
“Michelo, em nome da equipe e de todos aqui da empresa, eu gostaria de te receber da melhor forma e dizer que você pode contar comigo e com a gente! Certamente vamos ter muitos anos de parceria. Eu mesmo já estou aqui faz.... quanto tempo mesmo, Még? Bem, eu sou o mais velho da equipe, junto com a Margareth, esta maravilhosa mulher que um dia ainda irá amolecer o seu coração de pedra por mim. Err, bem, se precisar, é só chamar... Chuchu beleza, tomate maravilha?!”
Claus terminou a fala se pondo de pé e dando um soco no ar em forma de gancho. Já Chelo agradeceu um pouco constrangido com a animação do colega. Este continuava a descobrir detalhes da sua vida.
“Mas agora, me diga uma coisa, qual a origem do seu nome? É muito peculiar!”
“É, ele é mesmo e foi culpa do meu pai. Ele era apaixonado por Fórmula 1 e adorava um piloto, bem das antigas, chamado Michele Alboreto, mas, como o Galvão Bueno sempre falava Michééloauborêêto, toscamente e com um falso sotaque italiano, acabei virando Michelo porque era a forma que meu pai entendia!”
“Nossa, bem doido! Adorei o seu brocardo! Aliás, eu também adoro Fórmula 1, você sabia?”
"Aé?! Pois, lamento... Eu não. Eu realmente odeio Fórmula 1.”
“Sério?! E você gosta de que?”
“Ah… de vídeo games... e desenhar.”
Margareth cortou o papo furado e mandou todo mundo para o trabalho naquele mesmo tom de voz padronizado. Em dez minutos de expediente, Chelo tinha a sua mesa tomada por pastas, cada uma representando uma tarefa a ser feita. Dado pouco tempo, Margareth voltou com mais uma pasta, mas desta vez a ilustre moça falava com uma delicadeza espantosa que prenunciava algo.
“Miii, com licença again! Este job aqui é very important e será uma big proof for you. Mas, para explicá-lo melhor, vou chamar o Tonho, okay? É ele quem tá tocando essa conta…”
Terminou com uma careta que dizia detalhadamente “se fodeu”. Em seguida, saiu rebolando a sua bunda magra com passadas rápidas.
Tonho, ou Antônio Cavalazo, também chamado de Tonho da Lua, era o famoso proprietário da Agência Muchacho, homem muito bem aceito no círculo social dos empresários da cidade, chique do podólogo ao cabelo implantado. Chegou comendo um risóles de frango enrolado em um guardanapo totalmente engordurado. Puxou uma cadeira sobrando e sentou ao lado de Chelo.
“Você é o novo garoto?”
Chelo quase teve um treco com o bafo escroto que saiu da boca de Tonho. Hirto e sem reação, respondeu gaguejando.
“S-sou eu. V-você quer me apresentar um j-job?”
Tonho engoliu um gigantesco pedaço final de risoles, amassou o resto do guardanapo e o jogou no chão. Em seguida se aproximou até poucos centímetros do rosto do jovem com aquele bafo nojento.
‘Você está pronto para a revolução? Hein, você está pronto para a revolução?! ME DIGA!”
E gritou, erguendo-se da cadeira que saiu girando pela sala.
“Jovem, o que você tem em mãos pode tranquilamente mudar a vida de toda a nossa geração, ou seja, de muita gente, de gente importante, mas também de quem não tem nada. Mas principalmente vai mudar a SUA VIDA! E não só a sua… a da sua mãe, do seu pai e da sua namorada! Se você tiver uma, tem?”
Chelo balançou negativamente a cabeça pálida com olhos arregalados.
“Mas terá! E você poderá ter a mulher que quiser aos seus pés porque aqui, trabalhando com Antonio Tonho Cavalazo, a sua vida é um voo seguro e sem volta ao sucesso! SIM, EU DISSE SU-CÉ-SO!”
E fazia gestos enquanto olhava para os lados para ter certeza que chamava a atenção desejada.
“Mire aqui e pense comigo nesta ideia... uma vez eu conheci um gênio no deserto da Mauritânia, ele me disse algo, algo muito verdadeiro, algo com todo o sentido, algo que eu gostaria que você escutasse porque eu acredito nas palavras e elas mudam o mundo! Você não acha? Bem, ele me disse, ‘Tonho, escolha bem as suas batalhas porque o caminho da paz é mais eficiente’
E fez uma pausa dramática como se buscasse fôlego imediato, prosseguindo.
“Bem, meu garoto, meu bom e belo garoto… Eu já escolhi muito bem a minha batalha, agora eu quero saber se você é um dos meus. Me diga, você é um vendedor de sonhos ou apenas um vendedor de projetos? Um rato ou um gato? Win or Loser?”
E gesticulava enquanto ninguém mais dava bola, apenas Chelo, terrificado.
“O que eu estou te oferecendo é a total oportunidade de tomar conta da sua própria vida, do seu próprio jeito, sem precisar se preocupar com quase nada, partindo do poderoso autocontrole como ponto decisivo para a prosperidade na qual a sua atitude definirá até onde você quer ou vai chegar… Então, my friend, busque o melhor! Você veio para o mundo para ser feliz!”
Segurou o queixo de Chelo enquanto falava sorrindo.
“Esqueça os boletos. Ao meu lado, você será a autoridade de todos os seus atos e não te faltarão janelas de oportunidades! Basta você aprender a dizer sim para elas… Você diz sim para as oportunidades?”
Tonho largou o queixo de Chelo e parou feito estátua. O rapaz concordou balbuciando qualquer coisa.
“Garoto, sonhar é prazer, dedicação é lutar, mas vencer… vencer é a vida! Mas calma, não saia correndo… sair sem rumo vale menos que sentar na sombra. Então preste atenção nisso aqui!”
E abriu a temida pasta do job.
“Como sempre digo, não julgue um livro pela capa mas quando o livro for seu, garanta uma capa perfeita. Olhe aqui, olhe este trabalho! Como eu disse, ele mudará a vida das pessoas, mas se não for feito, todos nós corremos um enorme perigo...”
Tonho fechou um semblante macabro.
“Ao mesmo tempo que estamos aqui gerando capital, lucro, desenvolvimento e progresso para a nação, todos nós corremos risco. E, repito, nunca este risco foi tão grande! OUVIRAM?”
E deu um murro na mesa.
“Escolhas erradas são instantâneas e acontecem o tempo todo; fazendo ou deixando de fazer, sou quem decido pela minha vida, porém eu ainda não posso decidir pela vida dos outros… Porém, digamos assim, posso criar uma vida totalmente nova para os outros, boa para mim, mas menos boa para você e todo mundo que empresta seu destino a justiça. Eu chamo isso de… reinventar, inovar, buscar novos ângulos sem esquecer do tripé da prosperidade... como é pessoal? Apresentem para o nosso amigo!”
Tonho começou a falar em coro com os colegas.
“Um. Amar o seu trabalho. Dois. Organizar-se conforme os objetivos. Três. Conectar-se à realidade. Quatro. Vencer o inimigo!”
E deu uma risada soltando bafo pela sala inteira
“Capisce? O tripé tem quatro pés. HAHAHAHAHA”
Chelo leu em silêncio a folha do job com a descrição detalhada do que fazer.
“Er... Senhor, Tonho?! Só para confirmar… Devo criar uma montagem fotográfica com o filho do candidato a presidência acompanhado de uma jovem menor de idade em um quarto de hotel cheio de bebidas e, principalmente, com um cartão de crédito e vestígios de droga ilegal?”
“Gostei de você, jovem! Bem pontuado… Prin-ci-pal-men-te. Agora, mãos à obra porque temos uma eleição para ganhar! E não fique emburrado, um sorriso no rosto abre mais portas que uma chave mestra!”
Tonho foi embora. Chelo, desnorteado, ao banheiro, único lugar onde poderia ficar totalmente sozinho para aliviar o pânico deste evento traumático. Aproveitou para ficar por alguns minutos sentado na privada pensando no que fazer, mas sem conseguir pensar em nada direito de tanta raiva e medo. No meio daquele desespero, olhou a janela do banheiro, bem maior do que as habituais. Dá para passar, pensou. Olhou pela janela e calculou o pulo; era só de quatro metros, dá pra sobreviver caindo no gramado. Não teve dúvidas, quebrou a vidraça e se jogou em fuga. Ainda conseguiu ouvir os gritos de Claus; “o novato tá fugindo!”
Na parte externa, saiu correndo pelos fundos do prédio, mas se viu cercado por uma espécie de vala de quase três metros de largura. Dentro dela, dois crocodilos absurdamente gigantes e enfurecidos pulavam na ânsia de capturá-lo. Seus colegas o encurralaram; Claus foi o primeiro a partir para cima dele, numa postura de carateca, mas foi nocauteado por Chelo, que o jogou na vala para os crocodilos. Depois vieram Tiago, Kauam e Nádia, e eles também acabaram virando comida de réptil. Tonho tentou pará-lo com uma espada, mas acabou perdendo a arma e sendo empalado pela boca. Chelo poupou Margareth, que saiu correndo aos gritos de “desculpa por qualquer coisa”. Os corpos de Claus e Tonho saciaram o apetite dos crocodilos, que dormiram no sol, serenos e com suas panças imensas. Com os restos dos demais ex-colegas, foi possível fazer uma ponte sobre a vala e deixar a empresa pelos fundos. Afinal, ficava mais perto do ponto de ônibus.
Chelo foi embora assobiando More Than Words, mas passou na delegacia para fazer um boletim de ocorrência. Os policiais agradeceram a sua prestatividade com uma medalha de honra e o inocentaram de qualquer culpa por legítima defesa. Quando finalmente chegou em casa, deu graças a Deus pelo baseado que sobrou da noite anterior. Acendeu a tora e decidiu jogar um game numa boa.
12 de outubro de 2022. | Escrito por Carricas