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rádio cosplay

Hoje fez 38 graus na Sibéria. Dez quilômetros de foto mostram o círculo polar ártico totalmente sem gelo. O desmatamento da Amazônia dobrou nos últimos meses e a pobre joaninha entrou em perigo de extinção. O último parque da cidade foi fechado, mesmo assim eu uso meu carro todos os dias para ir à academia enquanto toneladas de lixo são produzidas a cada segundo que me exercito. Bem, é inegável… eu gero emprego; o guardador da rua, a faxineira que esteriliza cada aparelho de ginástica que eu uso. Tartarugas morrem por causa do canudo da minha latinha de Red Bull. Homens caçam animais selvagens por diversão e pelo meu dinheiro. Hectares de soja do tamanho da Bélgica são plantados para que eu coma filé ensopado. Dias atrás ocorreu a maior estiagem da década; faltou água para pobres no meio da pandemia de um vírus que matou milhões enquanto ricos sobrevivem. Quantos pobres morrem para o rico sobreviver? Hoje o meu crédito do cartão foi ampliado, ontem o meu empregado foi demitido porque ficou doente. É triste e também e daí? Todo mundo sofre. Até eu sofro. Muitas vez explodo de estresse, mas tenho diversas artimanhas para aliviar essa tensão. Eu chamo de as cinco vias: uso alguma droga, como chocolate, medito por dez minutos, tomo uma gelada ou vou correr na beira do mar. Sem máscara, porque quero ver alguém me multar. Sou bem mais do que você pensa, viu? De qualquer modo, admiro a posição das pessoas correndo protegidas, mas de que adianta se a máscara fica molhada? O vírus passa, santa ignorância, mas vale o ato político, né? Ficar em casa, nem pensar… Essa orla deve ser aproveitada pelo pagador de impostos e meu corpo vive uma luta diária contra a gravidade. A vida é uma só, que se cuide quem tem a tal da, como é mesmo? Cormo, comor… comorbidade! Um azar tremendo...

 

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Derrubaram a estátua de Cristóvão Colombo em Baltimore. Policiais militares mataram uma criança de treze anos dentro de casa. Um caso raro de ameba devoradora de cérebro foi detectada em pessoas nos Estados Unidos. Estudo inédito aponta que imunidade de rebanho é inatingível. Os brancos do Leblon não acham certo se ajoelhar em respeito a luta antirracista. Jurgen Klopp, o treinador alemão do time do Liverpool, testou negativo para o novo coronavírus. Dezoito vezes. Todos os testes foram pagos pelo seu clube, atual campeão mundial de futebol. Os testes acontecem todas as semanas e sempre aos jogos e só pode entrar em campo quem estiver sem o vírus no corpo. No Reino Unido, nove milhões de testes foram realizados e 300 mil deram positivo. O país é o décimo sexto entre os que mais testam por habitante no mundo. O Brasil, nesta tabela, fica na posição 112 do mundo. A nossa nação bonita por natureza mas castigada pela imbecilidade realiza menos testes por habitante que Cuba, Gabão, El Salvador, Quirguistão, Venezuela, Djibouti e muitos outros. Vão dizer que a culpa é do PT, da Copa e das Olimpíadas, pois, afinal, essas se fazem com estádios e não com hospitais. A vontade mesmo é de gritar um "CHUPA", mas para que se ninguém vai ouvir?

 

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Dez pras dez da noite, Belmondo acende o terceiro baseado do dia. Até então, nada de emocionante aconteceu. Acordou cedo, tomou um café preto e trabalhou aquela mixaria de horas pela manhã, depois cozinhou o almoço que será janta daqui a pouco e ainda ficou horas jogando videogame. Quando cansou, assistiu dois documentários sobre o Guga e isso o cativou a listar os vinte maiores atletas brasileiros de todos os tempos: Pelé, Adhemar, Ayrton, o próprio Guga, Maria Esther, Marta, Robert, Eder, Hortência, Garrincha, Nelson, Oscar, Arthur, Fabiana, César, Serginho, Paula, Joaquim e Daiane. Passatempo de uma vida que é desastre atrás de tragédia e vice-versa. Faz mês e meio que o coronavírus vitimou fatalmente o seu pobre pai, velho e doido negacionista. “Sua culpa”, disse o vizinho para Belmondo, “por não eficientemente protegê-lo da peste”. Uma semana após o luto completo, de negação, raiva, barganha, depressão até chegar na aceitação da perda tão dolorosa, passou por mais uma reviravolta, viu a sua carreira de celebridade virtual (youtuber, cantor, ator e apresentador) acabar após uma denúncia anônima. Viralizaram prints de conversas dele compartilhando fotos de crianças. Uma montagem, mas que todos acreditaram. Para piorar e compor uma farsa perfeita, criaram gravações do próprio Belmondo confessando o crime e muito mais usando trechos das falas de seus vídeos, comerciais e webnovelas para isso. Era o fim. Nos próximos dias, possivelmente será preso por este crime forjado em um escritório especializado de farsas e mentiras para destruição de reputações de celebridades adeptas ao socialismo. “Quem mandou ser de esquerda, pedofilia é coisa de esquerda”, disse o vizinho, “Fascista é de direita, pedófilo, de esquerda”. Belmondo teve muita vontade de bater no vizinho, mas preferiu não se envolver em novas confusões. Por fim, se não bastasse tanta desgraça, Belmondo perdeu um amigo para o Olavo de Carvalho. Todo mundo tem um caso, mas ele não teve escolha. Quando viu, já era tarde, Jardim das Sofrências e aquela baboseira toda de mandar tomar no rabo e achar isso engraçado. O processo de doutrinação foi longo, no início o amigo se negou posicionar-se como seguidor da seita. “Quero apenas ver porque tanto falam dele”. Com o passar das páginas e tuítes, a convivência foi ficando mais obscura entre os dois, os atritos eram constantes. Logo, qualquer um que ousasse criticar o papa-filosofal era um “chupa rola” ou “baitola”. Belmondo tentou achar explicações para a transformação, relativizou alguns posicionamentos, mas por fim não podia mais confiar em alguém que era contra o casamento gay por considerá-lo “surreal por abrir margem a homens casarem-se com porcos”. Decidiu sair do grupo para sempre.

 

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Alguns pés de maconha foram o suficiente para o delegado. Seu sentido aguçado, de quem viu mortes e assassinatos, corpos cortados e queimados por violência de tudo que é tipo, o alertou sobre o paradeiro deste casal de aloprados. Sempre os mesmos, desastrados sociais, assassinos em potencial através da droga e do tráfico - mais uma corriqueira ocorrência. Mesmo assim, seus pensamentos gritavam em seu interior. Opressão, desamparo, desilusão… São estes os mesmos que defendem a democracia, os destruidores das vidas inocentes? O delegado não aceitava, essa tortura precisava ser compartilhada. Suas palavras não são uma fantasia disfarçada de requinte literário. Seus presos são dois desvirtuados, mas o pior é quem alimenta toda a rede destes criminosos. Eis a frase que questiona, a hipocrisia nas entrelinhas da escrita do delegado. O playboy e a patricinha são os vilões desta narrativa. 

 

A angústia memética virou manchetes e cliques - bombou revolta em forma de poesia. Viral e correto, o delegado brinda o alcance de quem luta pela justiça do cidadão de bem! Agora ele virou estrela das diversas timelines com palavras que já soam com outro tom. Não são apenas músculo e coragem, defender a lei exige sabedoria e vasto conhecimento do Estado de Direito. Além do mais, a trajetória do delegado é também de grande interesse de seu fandom cada vez mais ampliado. É ele no vídeo daquele caso, pais assassinados, na tela está o astro armado! Luz, câmera, mas o que pensam os seus inimigos neste jogo de caça e caçador via satélite? Nada abala o pensante delegado, em frente da lente, ele manda o recado. “Muita gente me quer morto” e sorri. Seus alunos fiéis querem posar como ele. E o sucesso lhe permite abrir exceções para alguns pecados… Dia de gravação com a aluna especial, quem nunca? Ou melhor, “é para quem pode!” Antes da volta, uma parada para um sushi a dois. Ela já o conhece inteiramente através das aulas, o delegado poeta conta sempre as mesmas piadas, as mesmas mentiras, para todas. Mais uma iludida pelo homem empoderado. 

 

Atirou pela primeira vez ainda na escola da polícia. Hoje a sua arma é uma cruz que carrega para todos os lugares, mesmo assim, é muito raro dispará-la. Só fica sem para dormir, mas não para filmar. Antes do show, uma dose para soltar o personagem; uma linha para o professor, outra para o cinegrafista. São cinquenta minutos cheios de ação e missões realizadas. Pequena pausa na gravação para o delegado atender uma ligação, é o substituto no plantão. “Pode invadir, pode meter a borracha!”

Floyd? Nunca ouviu falar. Não luta contra a sua própria causa, violência é o que motiva um justiceiro cheio de raiva. Tímido, oprimido, calado… o gordinho cresceu. “Vejam aqui o meu cano! Você ganha um desse quando passar no concurso!” Os alunos gritam mito.

Aplausos e louros para mais uma prisão efetuada. Traficantes enjaulados aos montes pelo sistema que não se discute. Seus chefes dormem tranquilos enquanto o justiceiro escreve sobre seus dilemas enviesados. “Segue-a quem deve”, diz o poeta, “quem não a segue que pague em dobro.”

 

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Há tudo de existencial no meu fracasso. Sartre disse que “o homem nada mais é do que aquilo de que ele faz de si mesmo. Não é outra coisa que o seu projeto”. Nesta visão, a vida é de responsabilidade de cada um. Tornar-se uma pessoa de sucesso ou fracasso vai depender das escolhas e da moral da pessoa em si, o que não abre possibilidade de alguém terceirizar o seu próprio destino. Assim, quando eu escolho comprar alimentos de origem animal de grandes corporações, que contribuem para o desmatamento e a destruição do meio ambiente e consequentemente para o aquecimento global, eu colaboro para o estabelecimento de uma sociedade carnívora, a sua imposição financeira através da mídia que impõe a cultura do bem-estar carnívoro e também do estabelecimento do padrão de se alimentar de animais cultivados em cativeiros tortuosos e achar isso okay. 

 

Quando normalizo isso, generalizo preconceitos e posto-me de má fé e isso gera reflexo além de mim. Disse Sartre, “o outro é indispensável a minha existência, tanto quanto ao conhecimento que eu tenho de mim mesmo”. Moldo não só a mim, mas também ao próximo. A sociedade é carnívora porque eu e todo um grandioso conjunto de pessoas trabalhamos para que ela seja assim. Mesma coisa na luta racial. A sociedade é racista porque o conjunto de homens trabalhou para que ela seja racista e isso me inclui. Quando eu, branco, não assumo os meus privilégios de raça, eu ignoro o sofrimento que a discriminação gera nas pessoas e me abstenho do reconhecimento da luta para reduzir o gigantesco vão de distância entre as raças, alimentando a desigualdade que tanto culpo pelos problemas do país, evidenciando também a minha hipocrisia política e moral. Além disso, quando eu culpo a desigualdade sem me sentir culpado, por falar ou para fazer disso um teatro de aceitação política, minto para mim e perante a todos, tornando esse posicionamento em um tipo de falso senso comum, quando se enxerga o problema, sabe-se o motivo, mas não se motiva a mudá-lo por razão que seja, algum desinteresse pessoal ou simplesmente por achar que não é minha responsabilidade, abrindo mão da minha capacidade de atuar e aceitando um comodismo que é nutrido pela minha situação de privilégio. 

 

Da mesma forma quando eu culpo uma classe política por corrupção, me coloco como espectador desta situação calamitosa que gera conflitos, mortes e sofrimento às pessoas carentes de oportunidades e mais uma vez me coloco como privilegiado, posição gerada por diferentes virtudes, como acesso a boa educação, bons médicos, boa moradia e atividades de lazer. Isso garante estabilidade profissional, financeira, social e emocional para superar as dificuldades quando elas aparecem (e a pandemia é um grande exemplo disso). Ao mesmo tempo, não me engajando em uma luta política que garanta mais acesso ao cidadão necessitado de recursos públicos, coloco-me como cúmplice de toda esta situação. Mais uma vez e como consequência, isso influencia toda uma rede de pessoas que, como eu, assumem essa posição cômoda de reclamar e fazer nada para que a situação mude. 

 

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Ligo o rádio em uma estação que nunca ouvi. “Atenção, atenção: o presidente da República está morto”. Em segundos, fogos de artifício começam a estourar nos morros da cidade. Minutos depois, panelas nas janelas são batidas e carreatas começam a surgir em todas as ruas do meu bairro. O locutor lê as últimas palavras do dirigente: “Poderia ser diferente, poderia ser como naquela viagem, a ciranda da juventude de lumine refletida, o objeto brilhoso da própria imagem. Onde encontrei a paz e o riso mesmo que igual, me acompanhou e fez fé do meu ritual. Amanheço agora aberto com chá e ditos em vão: te olhar e não ter é algo que precisa ser dito, mas não! Até onde a caminhada dura ou o corpo cansa antes de acabar? As pegadas são garantias de que valem a pena as duras voltas do ar? Ó, grande senhora, sua imponência é respeitada com cicatrizes sem dó embaixo de uma cortina de nada; Raízes de todos os mistérios, vultos em meio deste capinzal, brigada de todas as dores passadas, andantes e pecadores do juízo final! Posso permitir sonhar além, a magia da vida repetida para sempre... não vá embora, pegue a conexão: história do humano te consola e mente! Mãos cruzadas até o amanhã, eterno tambor que toca sem parar, o que aconteceria se fosse assim, uma questão de sorte ou azar? Poderia ser diferente no documentário da minha própria vida, melhores momentos, como aquele abscesso de descuidadas feridas. São tão feios mas ao mesmo tempo não sinto pena, será a minha fúria interior? Porque apago e logo esqueço, oposto, engulo o nojo que for. Há dito que a dor não passa, está escrito o resto do sermão: cada coisa feita tem história, mãos como as suas e coração. A minha fantasia já não serve mais, os anos passaram, para onde ir? Rugas aparecem em meio às minhas palavras cruzadas de tanto mentir. Não diga, não quero mais ouvir o fim, espero cair toda a farsa em cima de mim”.

Inti Raymi

Florianópolis, 10 de julho de 2020.

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