

sem saída
No início, tive a esperança de que tudo voltaria a ser como antes. Rápido. Mas logo isso vira uma grande confusão. É tanta mentira, tanta sujeira que te assusta. Logo paralisa e você percebe a sua insignificância e falta de noção. Notícias a todo vapor, mortes em todos os lugares, a realidade chegando mais perto. O tempo é inimigo quando se pede uma decisão. Cada dia, cada hora, mais imóvel me sentia. A vaidade é o combustível da guerra pela pele de cordeiro enquanto os lobos sem pudor estão jogando qualquer um ao seu destino. Acima de quem? De todos e de tudo, jogue a morte para matar por suas invenções. Questão de quando e como, se é na bala ou sufocado. De fato não podemos deixar coisas importantes em mãos de gente malvada, de coração doente pela inveja e revanche. Quando o corpo é cheio de ódio, é preciso parar porque movimentos dolorosos vão acontecer.
Tranque-se em casa e sobreviva. Caia nas dívidas, compre o necessário, gaste! Tenha todo material e comida para não sair na rua. Cancele a internet para facilitar o isolamento e evitar muita informação. As palavras te atingem com mais força quando você é só. Mude os móveis de lugar, compre novos montáveis em casa para a sua diversão. Pinte, desenhe a vontade e de preferência nas paredes e, sem dúvida, comece a plantar. Dá laranja nasce um laranjal, mas sem sol pelas janelas fica difícil. Nessa terra seca também não cresce algo, nada, nem formiga vai alí, mas pelo menos é boa para botar a mão. A coisa mais próxima da natureza que tenho.
Pela janela, sirenes o dia todo. A noite, só sobram os mendigos, tossindo e brigando, tantos e doentes. Nenhum aplauso, só os assistentes sociais que nunca deixam de vir. Dentro de casa, a escuridão vem sempre cedo e leva um pedaço da falsa paz de coach branco que me habita. Crie planos, produza soluções, da crise surgem as oportunidades. Sinceramente, fechado nesta bolha, os dias são tão fúteis para investir em mim. Sonhar se tornou um privilégio de meu passado ingênuo e esforçado. Já quem não tem escolha, está cavando saídas e carregando tudo nas costas para sobreviver. Bem diferente da cara no espelho. Acordar em mim é sempre pior, invejo quem se aguenta. Café, trabalho, computador e esquecer que vou comer a minha comida. Fazer pão não é fácil, uma vez e nunca mais. A padaria é do outro lado da rua, deliciosos brownies, mas ali eu não volto. Dizem que nada é para sempre, então tomara que eu resista a essa. Mesmo sem contato humano, a transmissão acontece, os sintomas aparecem. É inevitável, você adoece.
Chá. E como tomo chá. Mas eu queria tomar um chá psicodélico que me fizesse apagar da memória toda a crueldade dita diariamente e o projeto de extermínio grotesco de uma classe sobrevivente ao seus recursos e sorte, sem auxílio, justiça ou pena, sofredora de todas as opressões e desprezos da cruel elite exploradora e hipócrita. Ou queria um chá tão forte quanto que me levasse para um futuro próximo, a tal da distopia, mas onde tudo é melhor e simples, com pessoas tomando sorvete na praia com seus cachorros soltos e felizes, uma galera reunida com respeito e realizando grandes brindes de celebração da vitória da irmandade. Templos lindos, dos vultosos aos mais simples, celebrando magnânimas festas ecumênicas com religiosos de todos os lados desse continente em nome da Paz. Esses delírios nunca estão na manchete do jornal, quando vão dizer que tudo vai melhorar?
Café e bolacha recheada no sofá como antigamente e na TV, um país que se foi e que parecia tão espetacular. O jovem brasileiro que surpreendeu o mundo em uma quadra de tênis e fez o Brasil ser grande. Pilotos ousados e com amor a pátria no ponto mais alto do pódio. Troféus, conquistas, orgulho! Campeões no gramado e nas quadras, medalhas de ouro de um dia melhor que passou e não volta mais. Uma bandeira que era linda. Um hino cantado com amor. Nostalgia é assim mesmo, gostosa de ver mas triste de sentir.
Um, dois, dezenas, centenas, milhares. Até quando? Não tem fim. Ou tem, mas não é do jeito que acreditam as mentes brilhantes e carecas de mandar e desmandar. Vai morrer de fome ou vai morrer de trabalhar? Deixo de lado o milagre da minha existência. Desisto, fecho os olhos e peço ajuda. Os deuses irão perdoar a minha queda, a sorte é que caí em cima de alguém. Estou na onda insana, sou mais um alienado deste novo mundo normal. Mas e se me deixarem morrer aqui sozinho? Acho que não confessei todos os meus pecados…
Inti Raymi
Florianópolis, 15 de maio de 2020.