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teste de alteridade

Aaron era assim. Camisa do Vasco, bermudão, bota de trilheiro. O que mudou com o tempo foi a barriga que cresceu e o cabelo que caiu, no resto, parecia eternizado naquela juventude de vinte anos atrás. Puxava papo com qualquer pessoa; vocalizava todas as observações corriqueiras da vida em longos monólogos sobre as suas predileções; eurodance, Sylvester Stallone, numismatografia, futebol e jardinagem. Cultivava desde jovem um belo jardim com o seu possante cortador de grama à gasolina.

 

Vivia na mesma casa materna, no mesmo quarto de sempre que foi ganhando mais e mais quinquilharias com o seu envelhecer. Imprestáveis computadores, subtecnologias obsoletas, brinquedos velhos, esculturas retrô, almanaques, camisetas de todos os tipos, bandanas, pôsteres, livros, revistas antigas, cds, dvds, fitas de música… No canto da garagem pode amontoar um pouco das suas coisas e também criar um painel póstumo de fotos dos seus nove chihuahuas: Tobi, Sussi, Bibi, Lulu, Loló, Ticó, Tuti, Sissi e Roberto Francisco.

 

Trabalhou vinte anos como estoquista em uma indústria química. Quando completou vinte anos e um dia foi demitido. Após ganhar uma leve bolada na demissão, decidiu curtir a vida e realizou o seu grande sonho; visitar o Rio de Janeiro e assistir a um jogo do Vasco da Gama no Estádio de São Januário. Depois que a grana acabou, pipocou de lá para cá, de mercado a padaria em busca de um emprego, mas nada durou. Nunca teve uma namorada. Sempre foi a piada do bairro. Ninguém o levava a sério.

 

Para ser justo, tinha um amigo: Chico, que foi embora para outra cidade e nunca voltou, exceto nos feriados mais importantes para visitar familiares, que costumeiramente zombavam da sua amizade com Aaron. Chegavam a apostar a hora que ele apareceria, e Aaron não falhava; Natal, Páscoa, Dia das Mães e, principalmente, Dia das Crianças. A sua visita sem aviso prévio era quase como uma tradição distorcida; como se lembrasse que nem tudo era sempre bom. 

 

- Ôo Chico, eu trouxe um presente para você!

 

Uma caneca do Vasco - “para torcer pelo nosso time”. Chico nunca dava bola para os presentes dele, na verdade tinha até um pouco de vergonha. Não se importava com futebol, nem ligava para as suas histórias; tinha uma vida bem diferente e distante daquela banalidade provinciana; tinha um estilo sofisticado, com festas em boates caríssimas, reuniões de negócios milionários, encontros com pessoas descoladas e tinha muitos amigos interessantes. No fundo, não gostava do Aaron.

 

- Ôo Chico, você que é viajado… Já foi no show do Vengaboys?

 

O tempo passou. Muito tempo passou. Chico viveu na Europa, conheceu o Japão, fez yoga na Malásia, subiu o Illimani numa missão espiritual, permeou outros planos cósmicos e universos paralelos-complementares, experimentou nadismo; ionizantes antiorbitais; terapia de alteridade; visitou os mais peculiares lugares do globo; experienciou o bom e o pior; amou e odiou de tudo e a todos; conheceu muita gente mas, depois de velho, voltou para morar na cidade onde nasceu. Não disse nada para Aaron, temendo que ele aparecesse na mesma hora. Sentia-se solitário e voltar para casa não resolveu em nada. As coisas não eram as mesmas como antigamente.

 

Chico decidiu dar uma volta pelo bairro para ver se ainda conhecia alguém. Passou em um antigo terreno onde jogou bola quando jovem, e agora tinha um prédio de três andares com novas pessoas vivendo e brincando. Andou mais um pouco, observou grandes tocos de árvores na calçada e se esforçou para lembrá-las, mas não conseguiu. Passou na casa do Richard, um amigo que virou engenheiro, e ela estava vazia e a venda. A rua foi calçada e o terreno lateral era preparado para uma futura obra. 

 

Andou até a casa de Aaron, ela estava lá, como sempre; mesmo jardim, telhas e janelas. Entrou pela garagem e foi para a parte de trás. Chamou por ele para dentro da porta de casa que estava muda. Desceu por trás de um velho rancho de madeira para o quintal dos fundos, onde foi andando entre algumas árvores, entre elas uma laranjeira que lhe chamou a atenção pelas grandes frutas quase maduras. Conseguiu ver ao fundo o velho rio do bairro que limitava o terreno e emitia um som de aconchego e atração. Desceu um leve declive até uma encosta com capim alto, onde costumava ficar alagada nas grandes cheias do rio. Foi abrindo uma trilha no capim enquanto espiava o rio com água às canelas até circundar um imenso bambuzal, o mesmo que lhe cedeu muitos bambus na juventude. Aaron estava parado mais a frente e não escutou Chico se aproximando.

 

- Aaron, beleza?

 

- Chico!? Meu deus, Chico! Meu deus! Eu jurava que nunca mais ia te ver... Vem aqui, deixa eu te dar um abraço!

 

E eles se abraçaram cordialmente com dois grandes sorrisos e em seguida ficaram dando tapinhas nas costas um do outro.

 

- O que você está fazendo aqui? - perguntou Chico, olhando para um arco metálico de quase dois metros de altura, adereçado com nove imagens de cachorros.  

 

- Gostou? - respondeu Aaron abrindo um sorriso de orgulho. - Depois que a mãe morreu, decidi fazer um altar digno para os chihuahuas.

 

- Você gostava mesmo deles, não? Por que nunca mais quis outro?

 

- Estes cachorros foram os meus melhores companheiros nestas décadas de vida, mas a dor de perdê-los é algo que eu não superaria mais uma vez. Por isso decidi homenageá-los para que qualquer um que passe aqui saiba que estes nove cachorros fizeram um homem muito muito feliz! 

 

Chico observou o altar com mais atenção e leu a frase escrita no arco metálico: “Estes nove cachorros fizeram Aaron Peter Krug muito feliz!” Cada adereço continha foto e nome de um dos cachorros. Chico contemplou o rio por um instante. Aaron caprichava nos toques finais do altar, aparando alguns matinhos quaisquer como se fizessem alguma diferença.

 

- Você não tem medo que o rio destrua o altar? - questionou Chico, jogando uma pedrinha no leito.

- Não vai. Esse rio não enche mais e a cada ano ele morre mais um pouco. Nunca mais chegou aqui e nem irá. 

 

Aaron terminou o ornamento colocando algumas pedras do rio ao redor do altar, em um desenho ondulado sem sentido. Depois pegou as suas ferramentas e foi em direção da casa.

 

- Vai ficar aí, Chico?

 

- Acho que sim, antes que seja tarde! - E sentou em uma das pedras que Aaron colocou.

 

- Bem… Eu vou indo que hoje ainda tem Vascão! 

 

 - Que horas é o jogo?

 

- Às sete. Vamos assistir? Agora a minha TV fica na sala e tenho os canais pagos…

 

- Vamos, sim! - e gritou ecoando - Vamooo, Vascoo!

 

Aaron desapareceu atrás do bambuzal e Chico ficou o resto da tarde arremessando pedras no rio.

26 de janeiro de 2021. | Escrito por Carricas

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